sexta-feira, fevereiro 22, 2008

MINISTRO DO STF CONCEDE LIMINAR SUSPENDENDO PARCIALMENTE A LEI DE IMPRENSA.


La liberté guidant le peuple, Eugène Delacroix, 1830



Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda
Cecília Meirelles in Romanceiro da
Inconfidência


O Ministro do STF, Carlos Ayres Britto, em atenção à AÇÃO DE ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF 130), ajuizada pelo PDT, concedeu a liminar requerida suspendendo, por ora, parte da Lei de Imprensa (Lei n.º 5.250/67).

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF foi introduzida em nosso ordenamento jurídico através do artigo 102, § 1º da Constituição Federal e regulamentada pela Lei n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999.

A própria Lei que disciplina a ADPF é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2231-DF), proposta pelo Conselho Federal da OAB (atacando os seguintes dispositivos: parágrafo único do art. 1º, § 3º do art. 5º, artigo 10 - caput - e seu § 3º e art. 11), com pedido de suspensão liminar cujo julgamento, iniciado pelo Plenário em 05/12/2001, foi suspenso por força de pedido de vista do Min. Sepúlveda Pertence, logo após a leitura do voto do relator que deferia parcialmente o pedido (suspendendo parcialmente o inciso I do parágrafo único do art. 1º e, na forma requerida, o § 3º do art. 5º, com efeitos ex nunc). Apesar do ataque parcial à Lei n.º 9882/99, o Conselho Federal da OAB defende a inconstitucionalidade integral do referido diploma (confira a petição inicial).

A ADPF, diversamente da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI, não tem como objeto a declaração da inconstitucionalidade de determinada norma em face de preceitos específicos da Constituição Federal. Seu objeto é mais abrangente e deve apontar a violação de princípios abraçados na conceituação dos chamados "preceitos fundamentais".

Vale destacar aqui as lições do ex-Ministro Carlos Mário Velloso, em texto produzido em homenagem ao Ministro Oscar Dias Côrrea (um dos responsáveis pela elaboração legislativa da Lei n.º 9.882/99):
"Uma questão deve ser posta: preceito fundamental seria o mesmo que princípio constitucional fundamental? Estes, os princípios constitucionais fundamentais, estão escritos nos artigos 1º a 4º da Constituição. Impõe-se resposta negativa. Os preceitos constitucionais fundamentais não são apenas os princípios fundamentais inscritos nos artigos 1º a 4º da Constituição. Ensina José Afonso da Silva: “Preceitos fundamentais” não é expressão sinônima de“princípios fundamentais. É mais ampla, abrange a estes e a todas as prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como são,

Por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais (tít. II).”

O Ministro Oscar Dias Corrêa, que integrou a Comissão que elaborou o anteprojeto de que resultou a Lei 9.882/99, lecionou, conforme citação do Ministro Néri da Silveira, no voto que proferiu na ADPF 01, que:

“Cabe exclusiva e soberanamente ao STF conceituar o que é descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, porque promulgado o texto constitucional é ele o único, soberano e definitivo intérprete, fixando quais são os preceitos fundamentais, obediente a um único parâmetro – a ordem jurídica nacional, no sentido mais amplo. Está na sua discrição indicá-los”.

E acrescentou:

“Parece-nos, porém, que, desde logo, podem ser indicados, porque, pelo próprio texto, não objeto de emenda, deliberação e, menos ainda,abolição: a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais.Desta forma, tudo o que diga respeito a essas questões vitais para o regime pode ser tido como preceitos fundamentais. Além disso, admita-se: os princípios do Estado democrático, vale dizer, soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, livre iniciativa, pluralismo político; os direitos fundamentais individuais e coletivos; os direitos sociais; os direitos políticos, a prevalência das normas relativas à organização político administrativa; ...”.

Celso Bastos ensina que na argüição de descumprimento de preceito fundamental não “se discute qualquer norma constitucional. Na nova hipótese só cabe a ação se houver desrespeito a preceito fundamental. Este fator faz uma enorme diferença. Pois não se trata de fiscalizar a lesão a qualquer dispositivo da que é, sem dúvida, a maior Constituição do mundo, mas tão-somente aos grandes princípios e regras brasileiras deste diploma. Dentre estes, podemos de antemão frisar alguns que, dada sua magnitude e posição ocupada na Carta, não deixam dúvidas quanto à caracterização de fundamentais: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político, a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e dos direitos e garantias individuais”.

Não há dúvida de que não será objeto da argüição a lesão a qualquer norma constitucional. A lesão a qualquer norma constitucional será objeto da ação direta de inconstitucionalidade. A norma constitucional objeto da argüição de descumprimento é a que compreende prescrição constitucional fundamental. Todavia, é preciso deixar claro, também, que preceito fundamental é expressão que abrange mais do que princípios fundamentais (CF, arts. 1º a 4º)." (VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 12,março, 2002. Disponível na Internet: <http://www.direitopublico.com.br/>. Acesso em: 22 de fevereiro de 2008).

Na liminar concedida ontem (21/02), o Ministro Carlos Ayres Brito entendeu presentes os requisitos ensejadores da medida e declarou suspensos os seguintes dispositivos da Lei n.º 5.250, de 09 de fevereiro de 1967, editada no flagror dos anos de chumbo: a) a parte inicial do § 2º do art. 1º (a expressão “... a espetáculos e diversões públicas, que ficarão sujeitos à censura, na forma da lei,nem ...”); b) o § 2º do art. 2º; c) a íntegra dos arts. 3º, 4º, 5º, 6º, 20, 21, 22, 23, 51 e 52; d) a parte final do art. 56 (o fraseado “...e sob pena de decadência deverá ser proposta dentro de 3 meses da data da publicação outransmissão que lhe der causa...”); e) os §§ 3º e 6º do art. 57; f) os §§ 1º e 2º do art. 60; g) a íntegra dos arts. 61, 62, 63, 64 e 65. Decisão que tomo ad referendum do Plenário deste STF, a teor do § 1º do art. 5º da Lei nº 9.882/99".


Dentre os efeitos imediatos da liminar estão as suspensões de tipos criminais e suas agravantes previstos na Lei de Imprensa, a responsabilidade civil culposa do jornalista que concorre para o dano decorrente de divulgação de notícia, a responsabilidade civil da empresa responsável pela divulgação da notícia, a supressão dos efeitos de decadência para a propositura da ação por danos morais baseada na Lei de Imprensa, a restrição para ingresso de material cultural estrangeiro, a apreensão de impressos etc.


Conforme enfatizou o Ministro Ayres Britto, na justificativa para a concessão da medida, "...imprensa e Democracia, na vigente ordem constitucional brasileira, são irmãs siamesas. Uma a dizer para a outra, solene e agradecidamente, 'eu sou quem sou para serdes vós quem sois' (verso colhido em Vicente Carvalho, no bojo dopoema “Soneto da Mudança”). Por isso que, em nosso País, a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade, porquanto o que quer que seja pode ser dito por quem querque seja."


É impossível não recordar que, em anos recentes, um jornalista correspondente estrangeiro chegou a ser ameaçado de expulsão por ter publicado reportagem que desagradou o Presidente de plantão. Ou retratava-se ou era expulso baseado em outra lei erigida na ditadura militar (invocou-se, na época, o art. 26 da Lei n.º 6815/80). E se o jornalista, por acaso, não fosse estrangeiro? A conclusão mais óbvia é supor que a Lei de Imprensa serviria como suporte para atender a autoridade contrariada, a não ser que se cogite de que a suposta ofensa só pudesse ser praticada por compatriotas ou que o entendimento fosse de que apenas a possibilidade de expulsão configurasse justa punição.


Chega, enfim, em boa hora a liminar concedida, recordando, para terminar, que seus efeitos atingem inclusive processos em curso amparados nos dispositivos atingidos, mas não é ela capaz de deter aqueles que já estejam sob o manto da coisa julgada (art. 5º, § 3º da Lei 9.882/99).